Reflexões sobre a Ética no Dia-a-dia

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Carlos José Reis de Almeida, advogado


“Os homens de bem não devem fazer a guerra a seus ofensores para os destruir e aniquilar, mas para os corrigir e fazê-los emendar-se de suas faltas”
(Políbio, historiador grego)

“Cada brasileiro vale, individualmente, mais do que todos os políticos, pois todos os políticos têm a obrigação constitucional de servir-lhe, e só para isso foram eleitos ou escolhidos, em concursos, para os cargos públicos”
(Ives Gandra da Silva Martins, jurista brasileiro)

Atendendo a convite de sua criadora, a Juíza de Direito Dra. Luciane Buriasco de Oliveira, participamos recentemente do Ciclo de Palestras de Chapadão do Sul discorrendo sobre um tema que está ligado a todas as pessoas indistintamente: A Ética no Dia-a-dia.

O tema procurou lançar reflexões sobre o quanto os pequenos acontecimentos cotidianos ligados à conduta humana podem refletir no bem comum.

Parece-nos apropriado, também por conta do período eleitoral, repisar alguns aspectos abordados na palestra com a intenção única de contribuir para o debate e para a reflexão dos nossos atos como cidadãos.

Não se discute que a humanidade atravessa uma crise de ordem moral, uma crise valores individuais. Os descaminhos da criatura humana estão refletidos na violência, na exclusão, no egoísmo e na indiferença pela sorte do semelhante. Assentam-se na perda de valores morais e se alimentam na frouxidão moral. Aparentemente, as pessoas não se sentem incentivadas a lutar por seus valores.

Pode se dizer que a corrosão dos valores morais também decorre da ampliação excessiva no desenvolvimento da personalidade individual, em detrimento do coletivo, do bem comum. Estamos diante de uma equivocada concepção de êxito, que segundo lição de GREGORIO ROBLES “é a do êxito puramente externo, ornamental, da pessoa individual. É um ideal narcisista, que se vê apoiado pela presença contínua das individualidades relevantes nos meios de comunicação”.[2]

A reversão deste quadro exige reformulação de vida, redescoberta dos próprios valores, o abandono do egoísmo cruel através da busca dos valores reais; o pleno exercício da solidariedade.

A ética é normalmente conceituada como a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. O mais realista dos conceitos, no entanto, vem de São Tomaz de Aquino: não faça ao outro o que você não gostaria que fizessem a você.

Partindo desta premissa podemos dizer que o primeiro passo para buscar a reversão deste quadro crítico deve ser dado no próprio espaço em que convivemos, nas relações interpessoais. As atitudes devem nascer, portanto, no comportamento, na postura humana.

O pai que cobra honestidade dos políticos sabendo que este é um valor essencial para quem exerce cargo público, perde a razão quando fura a fila do banco, quando não devolve o troco ou a carteira achada, e ainda se exibe para os filhos, como se tais atitudes fossem bons exemplos. A este pai falta uma reflexão sobre a própria postura e o reflexo negativo que ela produz no seu círculo familiar, no âmbito de suas relações pessoais. Falta-lhe consciência de que está absurdamente equivocado.

Aquele que vê alguém fazendo coisas erradas e passa, por isso, a desculpar seus próprios erros, ancora-se no perigo da generalização. É o famoso tipo que se justifica dizendo que roubar todo mundo rouba. A este falta a consciência de que quem erra deve pagar.

Os valores éticos nascem nos pequenos detalhes. As pessoas se embrutecem, se esquecem que com um gesto, com elegância, com gentileza, podem mudar a vida de alguém. ARISTÓTELES dizia que o último degrau da sabedoria é a simplicidade. Sem ela ninguém evolui.

É preciso consistência para construir relações saudáveis. É ético mostrar ao outro que ele tem importância. As pessoas gostam de ser bem tratadas. A autoridade que maltrata o servidor não pode ser autoridade, o patrão que destrata o empregado não merece o sucesso de seu empreendimento.

O cidadão precisa saber que humilhar o outro é antiético. A conduta que nasce no ambiente familiar prossegue na escola e no dia-a-dia das pessoas, refletindo por toda a vida. Na profissão nós somos conseqüência do que somos no dia-a-dia, na vida. A ética nos ensina a refletir sobre esses pequenos detalhes porque eles terão reflexos no que se pode chamar de macro-visão.

Somos conseqüência das nossas crenças, dos nossos valores, das nossas atitudes, do respeito ou da falta de respeito. O homem que é um pai de família equilibrado será um profissional equilibrado. Aquele que berra em casa o dia inteiro, que desrespeita todo mundo, dificilmente terá uma postura diferente na relação com os demais.

O alcance destes valores decorre de uma construção que parte de uma dimensão micro (olhar para dentro de si) para se chegar a uma visão macro (um país melhor).

O filósofo grego ARISTÓTELES, cujos conceitos de ética datam trezentos anos antes de Cristo, dizia que todos nós servimos a uma causa: o poder revela o homem. Poder, na visão aristotélica, significa serviço para o Estado. Aquele que se serve do Estado, perde a noção de ética. Aquele que se serve do Estado se enche de vaidade, e a vaidade, como sabemos, emburrece. O poder embriaga.

A democracia se caracteriza por uma visão do mundo também baseada no respeito pelo Outro, primeiro, e depois, pelos princípios da legalidade, do controle e da responsabilidade do poder. Estes princípios exigem que os governantes sejam expostos à luz pública para o efeito específico das avaliações dos governados.

A democracia se ampara no princípio da confiança e da boa-fé. Quando a esfera do público perde transparência e se vê permeada pelo segredo e pela mentira, a democracia sucumbe. Isto se dá quando a palavra esconde e engana ao invés de revelar, como determina o princípio ético da moralidade. KANT dizia serem injustas todas as ações relativas ao direito de outros homens cuja máxima não fosse compatível com a publicidade.

Para ARISTÓTELES não há nada mais belo que a Justiça. A Justiça alimenta o sonho das pessoas, e só não é mais bela que a amizade. Se eu for profundamente justo eu preciso de amigos; se eu for profundamente amigo eu automaticamente serei justo, pois a amizade engloba a Justiça.

Sob este ângulo, o Estado é uma visão amplificada do significado da amizade. O Estado nasceu da necessidade que as pessoas sentiram de buscar o bem comum. Para que o Estado seja perfeito é preciso entender esse significado da amizade. O administrador é escolhido para cuidar da cidade (daí vem o conceito de cidadania).

Assim como nas relações pessoais, na relação do administrador com o Estado também existem as falsas amizades (por interesse, por prazer, por vaidade) decorrentes de deficiência moral. Quando as amizades são perfeitas se diz que possuem excelência moral.

O Estado brasileiro tem a obrigação de se conduzir moralmente, por vontade expressa da Constituição Federal, que obriga ao administrador público a adoção de conduta ética irrepreensível. Deve atender a lição do mestre HELY LOPES MEIRELLES: “o agente administrativo, como ser humano dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto”.[3]

A clara intenção do constituinte brasileiro foi de fazer o administrador refletir sobre os aspectos éticos de sua atuação, analisar se a alternativa adotada está conforme os ditames da moral. Honestidade deriva de honra, ou seja, pode ser tanto a boa reputação de que se goza no meio social como a consciência íntima da própria dignidade pessoal. CARLO MARIA MARTINI diz que aquele que age em conformidade com tal consciência evita manchá-la, e numa sociedade boa, é estimado e é chamado precisamente de ‘homem honesto’.[4]

O magistrado paulista JOSÉ RENATO NALINI, citando lição de JOHANNES MESSNER, diz que a realização da idéia ética por parte do Estado não constitui tarefa exclusiva de cada uma das comunidades estatais, senão também uma tarefa do progresso político da humanidade em seu conjunto. “Aquilo que se pode chamar salto qualitativo ético na sociedade política brasileira só virá quando a comunidade nacional estiver inteira e coesamente desperta para a fiscalização do trabalho do governo. Este só se legitima se estiver a serviço do povo. O povo é o patrão do governo. O mandato ao governante não foi outorgado por Deus. Foi outorgado pelo povo, titular da soberania, por força mesmo do pacto constitucional”.[5]

É correto sonharmos com a edificação de uma sociedade justa, fraterna e solidária. Alcançá-la exige o sacrifício de todas as pessoas honestas. Compete a todos os cidadãos exigir que aqueles que sobrevivem às custas do erário se comportem com lisura.

O cidadão esclarecido sobre estes aspectos da ética e da política, a nosso ver, terá condições de escolher melhor seus representantes.

Eleitor ético só deve votar em político ético.

[1] MARTINS, IVES GANDRA DA SILVA – Ser cidadão – Folha de S. Paulo, 26.01.1997
[2] ROBLES, GREGORIO – Los derechos fundamentales y la ética em la sociedad actual, Madrid: Civitas, 1992, página 185
[3] MEIRELLES, HELY LOPES – Direito Administrativo Brasileiro, página 79
[4] MARTINI, CARLO MARIA – Viagem pelo vocabulário da ética, Lisboa: Edições São Paulo, 1994, página 20
[5] NALINI, JOSÉ RENATO – Ética Geral e Profissional – Editora RT, 2008, página 239

Declaração do Colégio de Presidentes de Subsecções

sábado, 20 de setembro de 2008

CARTA DE TRÊS LAGOAS

Os Presidentes das Subseções e a Diretoria do Conselho Seccional, reunidos no XL Colégio de Presidentes das Subseções da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional de Mato Grosso do Sul, realizado na cidade de Três Lagoas (MS) nos dias 18 e 19 de setembro de 2008, com o tema “Honorários Advocatícios”, cumprindo dever institucional, vêm tornar pública sua posição:

1. A palavra Honorários deriva de honra e os honorários advocatícios contratuais e sucumbenciais refletem a honorabilidade da profissão, representando verba necessária e vital através da qual o advogado provê seu sustento; possuem, portanto, evidente natureza alimentar;

2. O desequilíbrio decorrente do dispositivo legal que permite o arbitramento de honorários advocatícios por eqüidade, viola a proteção que a Constituição Federal assegura à remuneração do trabalhador;

3. O arbitramento de honorários advocatícios em valores irrisórios é aviltante e atenta contra o exercício e a dignidade profissional;

4. A aprovação do PLS n. 478 pelo Congresso Nacional, de autoria do Senador da República Valter Pereira de Oliveira (PMDB-MS) é medida necessária à justa remuneração dos advogados.

Três Lagoas (MS), 19 de setembro de 2008.

Diretoria da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional de Mato Grosso do Sul
Fábio Trad – Presidente
Katia Cardoso – Vice-Presidente
Ary Raghiant Neto – Secretário- Geral
Silvia Regina M.Nascimento – Secretária-Geral Adjunta
Leny Ourives da Silva – Diretora-Tesoureira

Presidentes das Subseções de Mato Grosso do Sul
Luiz Fernando (Diretor Tesoureiro da 1ª Subseção – Corumbá)
Maria Monica de Oliveira Pizzato (8ª Subseção – Naviraí)
Carlos José Reis de Almeida (27ª Subseção – Chapadão do Sul)
Elaine Alem Brito Martinelli (25ª Subseção - Sidrolândia)
Fernando Lopes de Araújo (24ª Subseção – Bela Vista)
Geraldo Albuquerque (29ª Subseção – Miranda)
Gilberto Francisco de Carvalho (28ª Sub. - Caarapó)
Glaucia Santana Harteslberger (20ª Sub. - Ribas do Rio Pardo)
Jamil El Kadri (Presidente da 26ª Subseção - Mundo Novo)
João Penha do Carmo (2ª Subseção – Três Lagoas)
José André Rocha (Vice-Presidente 18ª Subseção – Ivinhema)
Luiz Carlos Ferreira (3ª Subseção – Aquidauana)
Luiz Carlos Galindo Júnior (19ª Subseção – Bataguassu)
Maria Lurdes Cardoso (6ª Subseção – Paranaíba)
Melissa Ramos Queiroz (22ª Subseção – Ap.ª do Taboado)
Moacir Francisco Rodrigues (14ª Subseção – Camapuã)
Osmar Prado Pias (23ª Subseção – Bonito)
Atinoel Luiz Cardoso (Representante da 30ª Subseção - Iguatemi)
Patrícia Tieppo Rossi(10ª Subseção – Amambai)
Célia Regina (Delegada CAAMS 21ª Subseção – São Gabriel D'Oeste)
Cristiane Alez Jara (Dir. Tesoureira 11ª Subseção – Jardim)
Antonio Rodrigues (16ª Subseção – Costa Rica)
Sebastião Paulo Miranda (9ª Subseção – Coxim)
Sérgio Henrique P. Martins de Araújo (4ª Subseção – Dourados)
Beatriz Salvador (Presidente em exercício da 17ª Subseção – Rio Brilhante)
Paulo Cesar Bezerra Alves (Presidente 15ª Subseção - Fátima do Sul)
Walter Aparecido B. Junior (7ª Subseção – Nova Andradina)

O Advogado e o Uso de Expressões Duras

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

André L. Borges Neto (advogado em Campo Grande)

Já atuei na defesa de um colega advogado em que este se viu processado criminalmente por conta da utilização (no processo) de expressões duras e contundentes. Revelo o que pude estudar sobre o assunto.

Se o advogado estava no pleno exercício da profissão, falando em nome do cliente, estando devidamente autorizado a argumentar, ainda que de forma dura e contundente (é o que ocorre, por exemplo, quando da apresentação de exceção de suspeição, de juiz ou de promotor; é o que ocorre, por exemplo, quando se denuncia algum tipo de fraude, praticada por um agente público qualquer), não se pode – como regra, havendo exceções – considerar presente a justa causa para instauração de ação penal.

O advogado (trata-se de algo que precisa ser dito), como convém a qualquer profissional que se orgulhe da advocacia, jamais pode deixar de atuar PLENAMENTE, fazendo valer o Estatuto da Advocacia (Lei Federal 8.906/94), quando este revela que “Nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão” (§ 2º do art. 31).

Dentro de limites razoáveis de discussão da causa (porque o excesso e o que for desnecessário poderá ser punido), não há porque impedir o advogado de atuar de maneira enfática e grave. Assim agindo, o advogado está amparado por regras jurídicas da Constituição Federal (art. 5º, XIII, que trata da LIBERDADE DO EXERCÍCIO PROFISSIONAL, bem como art. 133, que trata do conhecidíssimo tema da INVIOLABILIDADE PROFISSIONAL DO ADVOGADO, que protege a liberdade de debate entre as partes do processo) e da Lei Federal 8.906/94 (Estatuto da OAB), que seguidas vezes dá o amparo jurídico necessário a invalidar a conduta daqueles que querem impedir a atuação corajosa (e não covarde e omissa) dos advogados, a saber: * Art. 2º, “caput” (“O advogado é indispensável à administração da justiça”). * Art. 2º, § 3º (“No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites da lei”). * Art. 7º, I (“São direitos do advogado”, ... “exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional”). * Art. 7º, § 2º (“O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria e difamação1 puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer”). * Art. 31, § 2º (“Nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão”).

Como se vê, é ampla e farta a PROTEÇÃO JURÍDICA, dada pelo legislador ordinário (com suporte na Constituição Federal), quanto ao tema da INVIOLABILIDADE PROFISSIONAL, que se traduz, em verdade, em “uma significativa garantia do exercício pleno dos relevantes encargos cometidos pela ordem jurídica a esse indispensável operador do direito” (STF, HC 69085/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 26.03.93, p. 6003), não se devendo esquecer, ainda, de que o próprio Código Penal, no art. 142, prescreve NÃO CONSTITUIR INJÚRIA OU DIFAMAÇÃO “a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador”, que acaba por repetir (em dispositivo recepcionado pela atual Constituição: STF, RHC 69619/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 20.08.93, p. 16319) a tutela da imunidade judiciária do advogado. Para ilustrar, eis os julgados que bem revelam a inexistência de justa causa para ações penais em torno do assunto: [¹ A expressão “ou desacato”, originariamente contida neste dispositivo, está suspensa pelo STF, por ter sido considerada inconstitucional (RTJ 178/67).]

“RECURSOS DE ‘HABEAS CORPUS’. ADVOGADO. DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. I – A denúncia, no que respeita ao paciente, não vai além de suposições. II – Inexiste justa causa para ação penal, se o advogado limitou-se a agir obedecendo a orientação do cliente. O mero exercício de um múnus público, sem desvio ou excesso, não pode ensejar a responsabilidade criminal” (STJ, RHC 0908/90/SP, Rel. Min. Jesus Costa Lima, DJ 17.12.90, p. 15389). “O advogado não pode ser responsabilizado quando atua como intérprete de seu cliente, que assume a autoria das expressões utilizadas na petição inicial” (RT 632/319). “Não pratica calúnia o advogado que transcreve, em defesa, fatos a ele passados por seus clientes” (TACrSP, ap. 931.083, j. 7.6.95, Bol. AASP nº 1.934).

Caracterizada está, pois, a inviabilidade, como regra, de ações penais que visem combater o que argumentou o advogado, ainda que de maneira dura e contundente, quando necessário. Advogado algum, portanto, deve se submeter ao exagero de uma ação penal, porquanto é certo (e é o direito positivo que assim revela) que as regras jurídicas acima citadas RESGUARDAM A LIBERDADE DE EXPRESSÃO DO ADVOGADO, algo indispensável ao pleno exercício de suas funções, inviolabilidade, aliás, “cujo destinatário é menos o advogado, e mais a sociedade que se vale dos seus serviços” (Gisela Gondin Ramos, “Estatuto da Advocacia”, Ed. OAB/SC, 1999, 2ª ed., p. 106).

Diante dessa demonstração, claro está que não pode o advogado ser processado criminalmente pelo que disse em nome do cliente, sendo caso de ser considerado, também, quanto à ATIPICIDADE do fato, aquilo que é repetidamente decidido pelos Tribunais, a saber: “Nos crimes contra a honra, o lado subjetivo do ilícito merece exame profundo. No que se refere à calúnia, exige-se que a intenção de lesar ou ofender a honra alheia fique cabalmente demonstrada. Assim há de ser porque o fato tomará caráter de licitude ou ilicitude, segundo intenção com que o agente o praticou” (RT 603/305). “Não há calúnia sem o dolo e o ‘animus defendendi’ não se concilia com o dolo. Logo, onde não há o fim de ofender não há calúnia” (RSTJ 41/309). “A intenção de defender (‘animus defendendi’) neutraliza a intenção de caluniar” (RT 634/331). “Para configuração dos delitos contra a honra, não basta que as palavras sejam proferidas para tal fim, sendo certo que não age dolosamente quem é impelido pela vontade de relatar as irregularidades que supõe existentes” (TACrimSP, Rel. Vico Manas, RJD 25/406). “Sem dolo específico, ou seja, a intenção de ofender a honra do atingido, não se tipificam as infrações dos arts. 138, 139 e 140 do Código Penal” (TACrimSP, Rel. Albano Nogueira, JUTACRIM 57/295).

Possível é, inclusive, sempre com os devidos temperamentos, ir até um pouco além, como aponta a jurisprudência: “A Lei confere à parte ou a seu procurador o direito de ofender, na discussão da causa, o ‘ex-adverso’, pois, na defesa dos interesses particulares, sobreleva necessidade, imperiosa muitas vezes, e inadiável em outras, de se travar o debate com acrimônia, deselegância, tudo na tentativa de mostrar a verdade. Na defesa da causa, o advogado não pode omitir argumento algum, e não são poucas as vezes em que interesses conflitantes exigem ataques mais violentos” (RT 597/321 – TACRIM, Rel. Des. Brenno Marcondes). Assim pode ser entendido, repita-se, porque “A veiculação de fatos em peças judiciais, com o intuito de lograr provimento favorável, encerra o ‘animus narrandi’ a excluir a configuração do crime de calúnia” (STF, Inq. n.º 380, Rel. Min. Marco Aurélio).

O magistério autorizado de Cezar Roberto Bittencourt confirma o que se sustenta: "O advogado, no exercício de seu mister profissional, por exemplo, é obrigado a analisar todos os ângulos da questão em litígio e lhe é, ao mesmo tempo, facultado emitir juízos de valor, nos limites da demanda, que podem encerrar, não raro, conclusões imputativas a alguém, sem que isso constitua, por si só, crime de calúnia. Faz parte de sua atividade profissional, integra o exercício pleno da ampla defesa esgrimir, negar, defender, argumentar, apresentar fatos e provas, excepcionar, e, na sua ação, falta-lhe o animus caluniandi, pois o objetivo é defender os direitos de sue constituinte e não acusar quem quer que seja" (“Manual de Direito Penal”, Parte Especial, vol. 2, 2001, pág. 342).

A alternativa, para caos que tais (indevido envolvimento do advogado em ação penal), sempre será o “habeas corpus”, “instrumento processual de dignidade constitucional, destinado a garantir o direito de locomoção, não podendo sofrer restrições em sua admissibilidade ao argumento de ser incompatível com a necessidade de exame de provas, se estas encontram-se acostadas à peça exordial e os fatos não apresentam natureza controvertida” (RT 756/517), sendo mesmo cabível a medida “desde que clara a inoportunidade da acusação, desde que evidente a injustiça da imputação, desde que prontamente perceptível o desacerto da autoria conferida ao acusado, é o ‘habeas corpus’, sem dúvida, o remédio para o saneamento deste mal que caracteriza a admissão inoportuna de ação penal contra quem não fez merecer o constrangimento decorrente do fato de se ver imerecidamente processado” (RT 644/272).

Para tudo confirmar, eis um recente pronunciamento do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso:

“HABEAS CORPUS – TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL – INJÚRIA, DIFAMAÇÃO E CALÚNIA (ARTIGOS 138, 139 E 140, DO CP) – MANIFESTA AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA – CONFIGURAÇÃO – EXCESSOS EM PEÇAS PROCESSUAIS – IMUNIDADE PROFISSIONAL DE ADVOGADO (ART. 7º, § 2º DA LEI N. 8.906/94) – ORDEM CONCEDIDA. O advogado possui imunidade profissional, não pode ser processado por eventual cometimento de injúria ou difamação (Lei n. 8.906/94, art. 7º, § 2º), salvo se houver comprovação de que cometeu excessos no exercício da sua atividade. Evidenciado, de plano, que o advogado não agiu com ânimo de injuriar ou de difamar, tendo inclusive se retratado quanto ao fato descrito como calúnia, impõe-se o trancamento da ação penal privada, em razão da manifesta ausência de justa causa para o seu prosseguimento” (HC 2008.015871-4, Rel. Des. Claudionor Miguel Abss Duarte).

Há que se cumprir, portanto, o quanto está contido no ordenamento jurídico brasileiro, que, bem interpretado, leva à inadmissibilidade (como regra) de ação penal por conta daquilo que argumentou o advogado no processo, tendo-se, sempre, em alta conta, o que vem decidindo o STF, quanto a que há “necessidade de rigor e prudência daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso” (HC 84.409, Rel. Min. Gilmar Mendes).


Já atuei na defesa de um colega advogado em que este se viu processado criminalmente por conta da utilização (no processo) de expressões duras e contundentes. Revelo o que pude estudar sobre o assunto.

Se o advogado estava no pleno exercício da profissão, falando em nome do cliente, estando devidamente autorizado a argumentar, ainda que de forma dura e contundente (é o que ocorre, por exemplo, quando da apresentação de exceção de suspeição, de juiz ou de promotor; é o que ocorre, por exemplo, quando se denuncia algum tipo de fraude, praticada por um agente público qualquer), não se pode – como regra, havendo exceções – considerar presente a justa causa para instauração de ação penal. O advogado (trata-se de algo que precisa ser dito), como convém a qualquer profissional que se orgulhe da advocacia, jamais pode deixar de atuar PLENAMENTE, fazendo valer o Estatuto da Advocacia (Lei Federal 8.906/94), quando este revela que “Nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão” (§ 2º do art. 31). Dentro de limites razoáveis de discussão da causa (porque o excesso e o que for desnecessário poderá ser punido), não há porque impedir o advogado de atuar de maneira enfática e grave. Assim agindo, o advogado está amparado por regras jurídicas da Constituição Federal (art. 5º, XIII, que trata da LIBERDADE DO EXERCÍCIO PROFISSIONAL, bem como art. 133, que trata do conhecidíssimo tema da INVIOLABILIDADE PROFISSIONAL DO ADVOGADO, que protege a liberdade de debate entre as partes do processo) e da Lei Federal 8.906/94 (Estatuto da OAB), que seguidas vezes dá o amparo jurídico necessário a invalidar a conduta daqueles que querem impedir a atuação corajosa (e não covarde e omissa) dos advogados, a saber: * Art. 2º, “caput” (“O advogado é indispensável à administração da justiça”). * Art. 2º, § 3º (“No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites da lei”). * Art. 7º, I (“São direitos do advogado”, ... “exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional”). * Art. 7º, § 2º (“O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria e difamação1 puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer”). * Art. 31, § 2º (“Nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão”).

Como se vê, é ampla e farta a PROTEÇÃO JURÍDICA, dada pelo legislador ordinário (com suporte na Constituição Federal), quanto ao tema da INVIOLABILIDADE PROFISSIONAL, que se traduz, em verdade, em “uma significativa garantia do exercício pleno dos relevantes encargos cometidos pela ordem jurídica a esse indispensável operador do direito” (STF, HC 69085/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 26.03.93, p. 6003), não se devendo esquecer, ainda, de que o próprio Código Penal, no art. 142, prescreve NÃO CONSTITUIR INJÚRIA OU DIFAMAÇÃO “a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador”, que acaba por repetir (em dispositivo recepcionado pela atual Constituição: STF, RHC 69619/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 20.08.93, p. 16319) a tutela da imunidade judiciária do advogado. Para ilustrar, eis os julgados que bem revelam a inexistência de justa causa para ações penais em torno do assunto: [¹ A expressão “ou desacato”, originariamente contida neste dispositivo, está suspensa pelo STF, por ter sido considerada inconstitucional (RTJ 178/67).]

“RECURSOS DE ‘HABEAS CORPUS’. ADVOGADO. DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. I – A denúncia, no que respeita ao paciente, não vai além de suposições. II – Inexiste justa causa para ação penal, se o advogado limitou-se a agir obedecendo a orientação do cliente. O mero exercício de um múnus público, sem desvio ou excesso, não pode ensejar a responsabilidade criminal” (STJ, RHC 0908/90/SP, Rel. Min. Jesus Costa Lima, DJ 17.12.90, p. 15389). “O advogado não pode ser responsabilizado quando atua como intérprete de seu cliente, que assume a autoria das expressões utilizadas na petição inicial” (RT 632/319). “Não pratica calúnia o advogado que transcreve, em defesa, fatos a ele passados por seus clientes” (TACrSP, ap. 931.083, j. 7.6.95, Bol. AASP nº 1.934).

Caracterizada está, pois, a inviabilidade, como regra, de ações penais que visem combater o que argumentou o advogado, ainda que de maneira dura e contundente, quando necessário. Advogado algum, portanto, deve se submeter ao exagero de uma ação penal, porquanto é certo (e é o direito positivo que assim revela) que as regras jurídicas acima citadas RESGUARDAM A LIBERDADE DE EXPRESSÃO DO ADVOGADO, algo indispensável ao pleno exercício de suas funções, inviolabilidade, aliás, “cujo destinatário é menos o advogado, e mais a sociedade que se vale dos seus serviços” (Gisela Gondin Ramos, “Estatuto da Advocacia”, Ed. OAB/SC, 1999, 2ª ed., p. 106).

Diante dessa demonstração, claro está que não pode o advogado ser processado criminalmente pelo que disse em nome do cliente, sendo caso de ser considerado, também, quanto à ATIPICIDADE do fato, aquilo que é repetidamente decidido pelos Tribunais, a saber:

“Nos crimes contra a honra, o lado subjetivo do ilícito merece exame profundo. No que se refere à calúnia, exige-se que a intenção de lesar ou ofender a honra alheia fique cabalmente demonstrada. Assim há de ser porque o fato tomará caráter de licitude ou ilicitude, segundo intenção com que o agente o praticou” (RT 603/305).

“Não há calúnia sem o dolo e o ‘animus defendendi’ não se concilia com o dolo. Logo, onde não há o fim de ofender não há calúnia” (RSTJ 41/309).

“A intenção de defender (‘animus defendendi’) neutraliza a intenção de caluniar” (RT 634/331).

“Para configuração dos delitos contra a honra, não basta que as palavras sejam proferidas para tal fim, sendo certo que não age dolosamente quem é impelido pela vontade de relatar as irregularidades que supõe existentes” (TACrimSP, Rel. Vico Manas, RJD 25/406).

“Sem dolo específico, ou seja, a intenção de ofender a honra do atingido, não se tipificam as infrações dos arts. 138, 139 e 140 do Código Penal” (TACrimSP, Rel. Albano Nogueira, JUTACRIM 57/295).

Possível é, inclusive, sempre com os devidos temperamentos, ir até um pouco além, como aponta a jurisprudência: “A Lei confere à parte ou a seu procurador o direito de ofender, na discussão da causa, o ‘ex-adverso’, pois, na defesa dos interesses particulares, sobreleva necessidade, imperiosa muitas vezes, e inadiável em outras, de se travar o debate com acrimônia, deselegância, tudo na tentativa de mostrar a verdade. Na defesa da causa, o advogado não pode omitir argumento algum, e não são poucas as vezes em que interesses conflitantes exigem ataques mais violentos” (RT 597/321 – TACRIM, Rel. Des. Brenno Marcondes).

Assim pode ser entendido, repita-se, porque “A veiculação de fatos em peças judiciais, com o intuito de lograr provimento favorável, encerra o ‘animus narrandi’ a excluir a configuração do crime de calúnia” (STF, Inq. n.º 380, Rel. Min. Marco Aurélio).

O magistério autorizado de Cezar Roberto Bittencourt confirma o que se sustenta: "O advogado, no exercício de seu mister profissional, por exemplo, é obrigado a analisar todos os ângulos da questão em litígio e lhe é, ao mesmo tempo, facultado emitir juízos de valor, nos limites da demanda, que podem encerrar, não raro, conclusões imputativas a alguém, sem que isso constitua, por si só, crime de calúnia.

Faz parte de sua atividade profissional, integra o exercício pleno da ampla defesa esgrimir, negar, defender, argumentar, apresentar fatos e provas, excepcionar, e, na sua ação, falta-lhe o animus caluniandi, pois o objetivo é defender os direitos de sue constituinte e não acusar quem quer que seja" (“Manual de Direito Penal”, Parte Especial, vol. 2, 2001, pág. 342).

A alternativa, para caos que tais (indevido envolvimento do advogado em ação penal), sempre será o “habeas corpus”, “instrumento processual de dignidade constitucional, destinado a garantir o direito de locomoção, não podendo sofrer restrições em sua admissibilidade ao argumento de ser incompatível com a necessidade de exame de provas, se estas encontram-se acostadas à peça exordial e os fatos não apresentam natureza controvertida” (RT 756/517), sendo mesmo cabível a medida “desde que clara a inoportunidade da acusação, desde que evidente a injustiça da imputação, desde que prontamente perceptível o desacerto da autoria conferida ao acusado, é o ‘habeas corpus’, sem dúvida, o remédio para o saneamento deste mal que caracteriza a admissão inoportuna de ação penal contra quem não fez merecer o constrangimento decorrente do fato de se ver imerecidamente processado” (RT 644/272).

Para tudo confirmar, eis um recente pronunciamento do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso:

“HABEAS CORPUS – TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL – INJÚRIA, DIFAMAÇÃO E CALÚNIA (ARTIGOS 138, 139 E 140, DO CP) – MANIFESTA AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA – CONFIGURAÇÃO – EXCESSOS EM PEÇAS PROCESSUAIS – IMUNIDADE PROFISSIONAL DE ADVOGADO (ART. 7º, § 2º DA LEI N. 8.906/94) – ORDEM CONCEDIDA. O advogado possui imunidade profissional, não pode ser processado por eventual cometimento de injúria ou difamação (Lei n. 8.906/94, art. 7º, § 2º), salvo se houver comprovação de que cometeu excessos no exercício da sua atividade. Evidenciado, de plano, que o advogado não agiu com ânimo de injuriar ou de difamar, tendo inclusive se retratado quanto ao fato descrito como calúnia, impõe-se o trancamento da ação penal privada, em razão da manifesta ausência de justa causa para o seu prosseguimento” (HC 2008.015871-4, Rel. Des. Claudionor Miguel Abss Duarte).

Há que se cumprir, portanto, o quanto está contido no ordenamento jurídico brasileiro, que, bem interpretado, leva à inadmissibilidade (como regra) de ação penal por conta daquilo que argumentou o advogado no processo, tendo-se, sempre, em alta conta, o que vem decidindo o STF, quanto a que há “necessidade de rigor e prudência daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso” (HC 84.409, Rel. Min. Gilmar Mendes).


publicado no site da OAB-MS (http://www.andreborges.adv.br/)

Ensino Jurídico - Diagnóstico e Perspectivas

Fábio Trad, advogado, Presidente da OAB-MS (2007-2009)

Vai longe o tempo em que formar-se em Direito era garantia de um lugar ao sol. Hoje, formar-se em Direito é apenas uma condição necessária para competir. Não é mais certeza de espaço, mas a oportunidade de lutar para tentar um espaço. O que antes constituía a grande vitória, hoje resume-se a uma singela ultrapassagem no disputado circuito do mercado profissional

Alarga-se de forma desmedida a base estrutura do ensino superior no país. Na área do Direito, o alargamento chega a ser agressivamente desmedido. O diploma de ensino superior não é mais privilégio de poucos, porém a sua massificação implica na gradativa perda de seu valor no mercado. Os sintomas são evidentes: engenheiros-taxistas, físicos-garçons, psicólogas-secretárias, advogados-pequenos empresários, na mais profusa e contraditória mistura de vocações frustradas com ocupações possíveis. O diploma de graduação perdeu o encanto, o charme e o valor. Não é mais a chegada, apenas um intervalo. Em breve, muito breve, a forma de ser notado como detentor de um pequeno diferencial será o pós-doutorado.

Aos números: em 1960, o Brasil tinha 69 (sessenta e nove) cursos de Direito. Até ontem, dia 17 de setembro, já são 1046 (mil e quarenta e seis) bacharéis ao ano. Advogados brasileiros: 650.000 (seiscentos e cinqüenta mil). Nos EUA, o número de faculdades de Direito não ultrapassa a 200 (duzentos). Não fosse o Exame de Ordem, o Brasil teria aproximadamente 4.500.000 (quatro milhões e quinhentos mil) advogados esbarrando-se uns nos outros nas ruas, nos fóruns, nas praças, nos cantos e nas avenidas.

A Ordem dos Advogados do Brasil está tentando frear este processo de criação indiscriminada de cursos jurídicos no país. Ancora-se em uma operante Comissão de Ensino Jurídico, além de consolidar o “OAB Recomenda”, programa que procura informar a população brasileira apontando os cursos que apresentam bom desempenho obedecidos critérios técnicos. Mas é preciso avançar. A OAB tem apenas direito a voz no processo de avaliação da criação dos cursos jurídicos. Não tem poder de veto. O resultado é conhecido: muitos cursos, a maioria, autorizados pelo Ministério da Educação foram reprovados pela OAB.

Em cidade do vizinho estado de Mato Grosso, houve contemplação de vagas para curso jurídico como prêmio para quem acertasse o nome de músicas em programa de rádio. Na cidade de São Paulo, um curso de Direito funcionava no período compreendido entre meia-noite e cinco horas da manha em uma sala de cinema...

Urge repensar a metodologia do ensino jurídico. Não é mais possível teorizar absurdos em livros e salas de aula como se o acadêmico fosse um alienado da realidade. A energia intelectual do acadêmico deve estar sintonizada com a problemática do país e do mundo. Vejam, por exemplo, para onde é destinada a energia gasta pelos neurônios dos acadêmicos de Direito brasileiros: Tício e Mévio estão em dois barcos, um holandês, o outro espanhol; chocam-se no mar, Tício e Mévio disputam pedaços dos navios para não se afogarem, sendo que metade dos escombros é holandesa e a outra espanhola; Tício mata Mévio e no momento do golpe fatal, metade do corpo de Tício está em cima dos escombros do barco da Espanha e a outra metade do corpo escorada nos escombros do barco holandês. Detalhe: em alto-mar. E o doutrinador ainda tem a ousadia de perguntar: qual é o país com jurisdição para julgar o fato? Teoria e prática devem estar associadas, porque prática dissociada da teoria é o soluço improvisado da inconseqüência.

Teoria no curso de Direito é fundamental. A prática, indispensável. Por isso, impõe-se aproximar o acadêmico de sua realidade, ministrando aulas teóricas para o domínio da dogmática, sensibilizando a sua inteligência para aplicar a técnica com ética profissional, intelectual e senso de justiça. No Direito Penal e processo penal, por exemplo, cabe discutir os institutos jurídicos teorizados em aula com o apoio de casos semelhantes aos noticiados pela imprensa a fim de provocar a tomada de posição do futuro operador do Direito, compelindo-o a fundamentar, dissertar, verbalizar, discursar, acusar, defender, julgar, enfim pensar o seu próprio pensamento como senhor de sua idéia e não reprodutor da idéia de quem o doutrina. Sem medo, pois Direito só se aprende fazendo; como aprender a nadar: tem que ser na água...

Várias são as carências metodológicas detectadas nos cursos de Direito. Uma das mais graves é a insistência da grade curricular em absolutizar a dogmática em detrimento da reflexão crítica conjugada com princípios e normas abertas constitucionais. Ambas são compatíveis, pois a dogmática só tem sentido para a ciência jurídica a partir do momento em que o jurista a domina para superá-la, transformando-a em meio para a grande aventura que justifica a essência humana do fenômeno jurídico: o sublime e sagrado ofício de interpretar, revelando, o Direito. E, é certo, que não há fonte jurídica mais adequada para o exercício do pensamento crítico e a argumentação analítico-reflexiva que a Constituição federal, manancial tão inesgotável quanto inexplorado de possibilidades e perspectivas jurídicas. Deste modo, não mais Direito Civil, porém Direito Civil Constitucional; não mais Direito Penal, sim Direito Penal Constitucional; não mais Direito Tributário, mas Direito Tributário Constitucional.

O Direito é uma ciência que se aprende fazendo com um olho no livro e o outro na vida. E o coração? O coração deve estar totalmente entregue à missão de realizar a Justiça, pois o Direito nasceu para servir ao Homem e não o contrário.

Demanda por celeridade exige uma Justiça de qualidade

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Cesar Asfor Rocha, Ministro do Superior Tribunal de Justiça.

A instalação do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em 2005 sinalizou profundas mudanças no Judiciário, até então apontado como o mais hermético e resistente a mudanças entre os três Poderes. Foram instituídas normas para proibir o nepotismo nos tribunais e regras para a aplicação do teto remuneratório para coibir os supersalários que recorrentemente escandalizavam a opinião pública.

A correção dos desvios refletiu nova atitude dos magistrados, mais aberta ao diálogo com a sociedade e mais propensa a assimilar construtivamente críticas em relação aos serviços judiciais. Pôs-se fim ao clichê do juiz encastelado em torre de marfim, distante da sociedade.

Tal atitude implicou a busca de maior transparência. Era preciso assegurar ao cidadão amplo acesso a informações sobre o desempenho da Justiça. Essas informações, lamentavelmente, não existiam ou eram imprecisas e defasadas. O Judiciário, na verdade, não se conhecia.

Nesse contexto, a Corregedoria Nacional de Justiça lançou em 2007 o programa Justiça Aberta, um banco de dados com informações na internet (www.cnj.jus.br) atualizadas continuamente, que permite o monitoramento da produtividade judicial pelo próprio Poder Judiciário e pela sociedade. É a prestação de contas que faltava.

Esse autoconhecimento é o ponto de partida para que o Judiciário dê continuidade a mudanças que se reflitam, efetivamente, na qualidade da prestação jurisdicional que, sabemos, é alvo de insatisfação por parte dos jurisdicionados. A principal das reclamações é a morosidade, muitas vezes associada à impunidade ou não-efetivação da Justiça. Mais de 50% das representações que chegam ao CNJ referem-se a esse problema.

É um problema que atinge desde a primeira instância até os tribunais superiores. Nascido na Constituinte que ampliou os direitos e as garantias do cidadão, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) completará 20 anos no dia 7/4 do ano que vem, com aumento de 8.920% no número de processos julgados. No primeiro ano de funcionamento, julgou 3.700 processos. Em 2007, 330 mil processos.

A progressão geométrica da demanda compromete não só a celeridade, mas a própria missão constitucional do STJ, que é a de uniformizar a interpretação das leis federais. Chegou-se ao paradoxo em que, por julgar número excessivo de processos, a construção da jurisprudência, que é seu papel maior, ficou em segundo plano. Com uma média anual de 10 mil processos julgados por cada ministro, o complexo ato de julgar corre o risco de se transformar em mero ato mecânico.

Atacar esse mal implica a adoção de um conjunto de ações e iniciativas. A busca da gestão eficiente, certamente, é uma delas. A emenda constitucional nº 19, de 1998, forneceu importante meio de a sociedade exigir a qualidade dos serviços prestados pelo Estado, ao introduzir a eficiência como um dos princípios da administração pública. Diagnósticos precisos, planejamento, profissionalismo, soluções criativas, racionalização, enfim, todos os requisitos de uma gestão moderna não são, portanto, apenas desejáveis, mas indispensáveis.

Se a Constituinte de 1988 deu ênfase à segurança jurídica, particularmente à garantia do contraditório e da ampla defesa, em detrimento da celeridade processual, o que se observa hoje é o clamor da sociedade por uma Justiça mais rápida. A emenda constitucional nº 45, da reforma do Judiciário, refletiu esse anseio ao inserir entre os direitos fundamentais a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade da tramitação. É difícil conciliar esses dois princípios antagônicos: celeridade x segurança.

A demanda por transparência e por celeridade processual exige uma Justiça de qualidade. Esta deve ser buscada não apenas com uma ou duas ações, mas, sim, com múltiplas iniciativas, que passam pela busca de uma gestão mais eficiente, com o aproveitamento racional dos recursos, a capacitação de magistrados e servidores e a racionalização de procedimentos, por avanços na informatização do processo, de acordo com os procedimentos previstos na lei nº 11.419/ 06, pela reforma processual e por tantas outras medidas.

Esse é um desafio a ser enfrentado não apenas pelos dirigentes do Judiciário, mas por todos os partícipes da atividade judicial, sejam eles magistrados, membros do Ministério Público, advogados, servidores, promotores. Somente com a mobilização de todos esses atores é que o Judiciário poderá atender à exigência da sociedade de uma Justiça de qualidade, efetiva e em tempo razoável.

(Artigo publicado pelos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo no dia 8/9/2008)

 
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