TJ-SP determina que seguradora indenize clientes acusados de fraude

terça-feira, 18 de maio de 2010

publicado no site Ultima Instância em 18/05/2010 - 10h20

O TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) confirmou a sentença de primeira instância que condenou a seguradora Marítima Seguros a indenizar os danos morais e materiais sofridos por clientes da seguradora que deixaram de receber o valor dos seguros contratados por terem sido acusados injustamente de fraude.

O TJ manteve a sentença que condenou a Marítima à publicação da sentença em jornal de grande circulação e à abstenção de induzir, obrigar, sugerir, constranger ou qualquer outra ação que implique renúncia ou desistência por parte do segurado consumidor do seu direito ao recebimento da indenização.

De acordo com a ação civil pública movida pelo Ministério Público e julgada procedente pela juíza da 11ª Vara Cível da Capital, a Marítima se recusava a pagar o valor do seguro a proprietários de carros roubados, alegando a existência de contratos privados de compra e venda de seus veículos firmados no Paraguai, ou de certidões assinadas por policiais militares do Mato Grosso, no sentido de que teriam visto o veículo atravessar a fronteira do Brasil com o Paraguai, antes da data do sinistro.

Com base nessas alegações, a Marítima acusava os clientes de crime de estelionato na modalidade de “fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro”.

Os representantes da seguradora muitas vezes procuraram os segurados e os intimidavam, dizendo que se não desistissem da indenização acabariam presos e processados criminalmente. Como o cliente não desistia de receber o valor do seguro, a seguradora procurava sempre um mesmo distrito policial, apresentava o documento falso e pedia a instauração de inquérito policial.

De acordo com o MP, a Marítima sempre forçava que a discussão se estendesse por mais de um ano, período em que prescrevia o direito do segurado.

O MP identificou, só nos anos de 1999 a 2002, 61 inquéritos policiaisem tramitação no 27º DP da Capital, instaurados a pedido da Marítima, contra os consumidores, sob alegação de fraudes.

Na ação, o MP alegou sérios indícios de que as certidões emitidas pela polícia militar do Mato Grosso eram falsas porque não existe efetivo controle dos veículos que passam pela fronteira entre o Brasil e a Bolívia. Além disso, demonstrou que os “contratos privados” celebrados em cartórios do Paraguai não possuíam valor legal.

“Diante do aviso de sinistro, a ré (Marítima) buscava soluções ilícitas para se esquivar do pagamento do capital segurado, inclusive invocando documentos estrangeiros (escrituras) de compra e venda falsas lavradas da República do Paraguai”, diz o acórdão do Tribunal de Justiça, cujo relator foi o desembargador Antônio Benedito Ribeiro Pinto.

“Essas condutas violam mormente a boa-fé objetiva, o dever de lealdade para com o segurado", afirmou.

Advocacia Agredida

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira - advogado

Há poucos dias, assistimos estarrecidos à violência cometida contra o advogado Roberto Podval, defensor do casal Nardoni. Com destemor, competência e altivez ele exerceu o sagrado direito de defesa, em nome de acusados que já estavam condenados pela mídia e pela opinião pública. Foi alvo de agressão física e de inúmeras outras de natureza moral, que não o alcançaram por ser ele portador de inatingível dignidade pessoal.

A incompreensão histórica que nos acompanha, e que agora recrudesceu, faz com que os advogados sejam vistos como cúmplices do cliente.

Consideram-nos advogados do crime, e não porta-vozes dos direitos constitucionais e processuais do acusado, que, diga-se, são direitos e garantias de todos e de cada qual. Portanto, violados quaisquer deles num caso concreto, mesmo se tratando de acusado notoriamente culpado, a próxima violação poderá atingir qualquer cidadão, ainda que inocente. Vale repetir à exaustão: nós, advogados, não somos defensores do crime, defendemos a obediência aos direitos e às garantias individuais.

Na atualidade o desprestígio da advocacia atingiu níveis inimagináveis. Pode-se afirmar a ocorrência de algo inédito em nosso país: a advocacia está sendo hostilizada.

Um Estado repressor e policialesco em franca formação, de um lado, e, de outro, uma mídia sedenta de escândalo e tragédia, especializada na teatralização do crime, têm contribuído para a construção de uma imagem negativa da advocacia e, o que é mais grave, têm contribuído para apequenar o próprio direito de defesa. Passou ele a ser considerado como desnecessário, inconveniente, instrumento de chicanas e de ganho para os advogados.

É estranho que a advocacia esteja sendo criticada em aspectos absolutamente comuns a outras profissões, que, no entanto, ficam impunes.

Fala-se que os pobres não podem contratar bons advogados por não poderem pagar os honorários, ficando carentes de assistência jurídica. Admitindo-se como correta a afirmação, também é correto dizer que os pobres são carentes de boa saúde, de adequada educação e de habitação digna. A culpa não é dos advogados, dos médicos ou dos engenheiros, mas sim da trágica desigualdade social que reina no País. Note-se que, no caso da advocacia, os carentes de recursos são assistidos ou pelos não poucos advogados que lhes atendem gratuitamente, ou pelos que, conveniados pelo Estado, lhes prestam assistência e recebem irrisórios honorários do Estado, ou ainda pelos competentes e dedicados defensores públicos.

Verbera-se, ainda, que advogados cobram honorários elevados. Trata-se de uma assertiva que, se verdadeira, não pode ser generalizada, pois a maioria esmagadora dos profissionais (200 mil só em São Paulo) enfrenta grandes dificuldades no mercado de trabalho. De qualquer forma, ela causa espécie. A contratação de honorários é ato bilateral - há quem cobre e há quem aceite e pague. Qual o motivo de estranheza ou de crítica? Para uma sociedade que supervaloriza o ganhar e o ter, em detrimento do ser, tal observação é ridícula, para não dizer hipócrita. Podem ganhar os jogadores de futebol, os artistas, os grandes médicos, cirurgiões plásticos, os arquitetos e decoradores, os empresários, os banqueiros, os jornalistas e apresentadores de TV, etc., etc. No entanto, dos advogados se parece querer exigir trabalho não remunerado.

Antes mesmo de o Estado se organizar tal como o conhecemos hoje havia aqueles que "eram chamados" para emprestar a sua voz - os chamados "boqueiros" - em prol dos que careciam de defesa. É verdade o que se diz: o primeiro advogado foi o primeiro homem que com a sua palavra defendeu um semelhante contra uma injustiça. Sempre fomos e seremos os "boqueiros" daqueles que não têm voz e não têm vez.

Qualquer cidadão, inocente ou culpado, ou titular de uma pretensão, procedente ou improcedente, tem o direito de recorrer ao Poder Judiciário para se defender e para deduzir a sua postulação. E nós, advogados, somos os agentes do exercício desses direitos perante quaisquer juízos e tribunais, pois exercemos com exclusividade a chamada capacidade postulatória. Somente nós, advogados, temos o poder de movimentar o Judiciário, que é originariamente inerte. No juízo criminal exercemos o direito de defesa, sem o qual o processo nem sequer pode ser instaurado. Somos, pois, o elo entre o povo e a Justiça.

A propósito da defesa no processo penal, mesmo os mais furiosos adeptos de punição contra os acusados deveriam respeitar e defender o direito de defesa, pois sem ele os seus instintos sanguinários nunca poderiam ser satisfeitos, a não ser pela vingança privada.

Nos momentos de ruptura institucional ou de obscurantismo social, os advogados sempre foram desrespeitados e agredidos. Napoleão Bonaparte desejou cortar a língua dos advogados. Durante a Revolução Francesa, Robespierre e o promotor Fouquier-Tinville impediram a atuação dos advogados na defesa dos acusados. Em menos de uma semana houve mais de mil condenações e decapitações. E, durante a Revolução, Malesherbes e Nicolas Barrier foram guilhotinados por exercerem a defesa.

A história recente do Brasil registra a heroica epopeia dos advogados que se opuseram com rara coragem e desprendimento às ditaduras getulista e militar.

Não estamos vivendo hoje um período de ruptura institucional, mas atravessamos triste período de verdadeiro obscurantismo, representado por uma cultura repressiva que se instalou no seio da sociedade e que reflete a intolerância raivosa, a insensatez, o ódio e o desejo de expiação e de vingança. Tais sentimentos não raras vezes atingem a advocacia.

Embora o caminhar seja árduo, e sempre o foi, continuaremos a seguir a nossa saga. Continuaremos a exercer o nosso glorioso ministério de postular pelo direito e pelo justo em nome de terceiros, em benefício da cidadania e da democracia.
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* Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo no dia 29/4/2010

Discurso no STF

Do site Migalhas (http://www.migalhas.com.br/)

A posse do ministro Cezar Peluso na presidência do STF e do ministro Ayres Britto, na vice-presidência, ocorrida na última sexta-feira, 23/4, contou com a presença de diversas autoridades.

"Seria difícil traduzir em palavras a intensidade com que vivo esse instante", frisou o novo presidente ao se definir como homem comum, avesso por índole e radical convicção à notoriedade e a autoreverência, mas que se obriga a "fazer praça da imensa honra de chegar, pela via sempre compensadora do trabalho, ao mais elevado posto que transcende uma carreira eleita há mais de quatro décadas como projeto de toda uma vida".

Representando a comunidade jurídica, os "espíritos livres", o advogado Pedro Gordilho saudou o novo presidente e o vice com um aplaudidíssimo discurso.

Para o causídico, Peluso é um juiz da realidade do seu tempo : aprecia os fatos que o cercam e, sempre que necessário, os conhece diretamente antes de decidir.

Já sobre o vice-presidente, o advogado destacou que, para o ministro Ayres Britto, humanidade significa solidariedade social. Disse também que os princípios constitucionais, na visão do ministro, têm parte ativa entre os instrumentos democráticos que tornam concreta essa diretriz.

DISCURSO

Sr. Ministro Cezar Peluso, Presidente do Supremo Tribunal Federal

Sr. Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva,

Sr. Presidente da Câmara dos Deputados, Deputado Michel Temer,

Sr Presidente do Senado, Senador José Sarney,

Sr. Procurador-Geral da República Dr. Roberto Gurgel, nomes que pronuncio e destaco e, fazendo-o, homenageio as demais autoridades presentes,

Colega Ophir Cavalcante, Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil

Senhoras, Senhores,

Colegas Advogadas, colegas advogados

MINISTRO CEZAR PELUSO (*)

Cabe ao veterano advogado militante – sem outros títulos senão o certificado da lixa do tempo, em uma tribuna que felizmente não confere promoção por antiguidade – a incumbência insigne de celebrar os novos dirigentes do Supremo Tribunal Federal, Presidente Cezar Peluso e Vice-Presidente Aires Brito, no pórtico da jornada que se vai iniciar.

Incumbência grata, devo dizer, em razão da afeição que me liga aos homenageados, juízes eminentes e advogado, por certo, mas todos observadores atentos da alma humana e, por isso mesmo, habilitados a depor reciprocamente e com conhecimento acerca das atividades que ilustram os nossos caminhos e das ideias e sentimentos que mais nos uniram na saudável convivência desses últimos anos.

Continuamos contemporâneos do futuro, buscando remédios mais justos e equânimes para as inquietações de nosso tempo. O secular instinto de liberdade e as aspirações de justiça social procuram fundir-se em medidas que superem as contradições sociais e econômicas, agravadas pelas crises financeiras, os contrastes ideológicos e os antagonismos políticos.

Esse Eg. Tribunal fez eco a tais inquietações visíveis em nosso país. Ameaças e abusos que tiveram como molas propulsoras certas forças policiais, alguns setores da Magistratura e do Ministério Público e uma expectativa social muitas vezes proveniente da fragilidade das informações. Mas com pulso forte, sem temer as deturpações dos polemistas de plantão, o Exmo. Sr. Presidente Gilmar Mendes, que conclui seu mandato na Presidência, defendeu com vigor os direitos fundamentais e as garantias individuais. Assim o fez no livre curso do debate forense e, por igual – visando alcançar grande parte da sociedade desinformada –, em oportunas e convincentes entrevistas dadas à imprensa, esclarecendo, em linguagem acessível, o que se passa na intimidade de um julgamento, de uma proposição jurídica, de uma preceituação constitucional.

A nação brasileira muito deve a V. Exa., Ministro Gilmar Mendes, que com seu destemor, sua vasta cultura jurídica e seu intenso labor deixa a Presidência, podendo se envaidecer justamente – sem prejuízo da notável administração que imprimiu à nossa Suprema Corte –, por haver corrigido os rumos de algumas instituições que se achavam à deriva do arcabouço constitucional no plano da observância das garantias que a Constituição reclama.

Não se compreende como se possa construir uma nação vigorosa, em que cidadãos aspirem o bem e a grandeza, pelo aviltamento do homem com o emprego de processos tenebrosos, desligados do sistema legal, que nele procuram sufocar e extinguir o quanto existe de nobre, de belo, de fecundo e criador, para reduzi-lo a um autômato, a um temeroso, acanhado pela degradação moral, arrancando-lhe tudo aquilo que nele mostra superiormente a presença do sopro divino. O nosso canto de vida é, agora mais do que nunca, um canto à justiça e ao Juiz que a torna viva, e o seu refrão há de ser a estrofe de Walt Whitman, em sua exaltação imortal ao juiz (**):

“Grande é a Justiça;

A justiça não é aquela feita por legisladores e leis... está na alma,

Não pode ser alterada por estatutos, não mais que o amor ou o orgulho ou a atração gravitacional, pois a justiça está nos grandes e perfeitos juízes da natureza .... está em suas almas (...)

O juiz perfeito nada teme.... poderia ficar cara a cara com Deus,

Diante do juiz perfeito todos recuam .... vida e morte recuam .... céu e inferno recuam.”

Vossa Excelência, Sr. Ministro Cezar Peluso, assume a Presidência do Supremo Tribunal tendo ao seu lado o Ministro Aires Brito, um humanista, um poeta, que, como profundo conhecedor da constituição brasileira, busca, notadamente nos princípios que orientam e comandam o nosso estatuto fundamental, a resolução para os conflitos judiciais. Posso afirmar que humanidade, no entendimento do Ministro Aires Brito, significa solidariedade social. E os princípios constitucionais, na visão de S. Exa., têm parte ativa entre os instrumentos democráticos que tornam concreta esta diretriz. Com uma visão social abrangente, marcante e didática na interpretação da Constituição, concede-nos a garantia de que o Supremo Tribunal, à luz de sua hermenêutica, estará em permanente alerta às ameaças e abusos praticados pelos outros poderes e nas resoluções dos conflitos.

Do ponto de partida de sua atividade luminosa até atingir a culminância que ora se inicia, V.Exa., Sr. Presidente Cezar Peluso, viveu plenamente, como participante ativo, todas as experiências e aflições do magistrado de carreira.

Iniciou-a em Itapetininga, no distante janeiro de 1968, seguindo-se as Comarcas de São Sebastião, Igarapava, até a Capital paulista, quatro anos após seu ingresso na magistratura.

Por dez longos anos esteve V.Exa. como juiz de primeira instância em São Paulo até a promoção por merecimento para o 2º Tribunal de Alçada Civil, onde oficiou durante quatro anos, sendo promovido, em 14 de abril de 1986, sempre por merecimento, para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Funções e ofícios que foram exercidos sem prejuízo do magistério, atividade intelectual que tanto o encantou e está entre as preferidas de V.Exa.

Marcas vigorosas se mantêm nos textos de sua lavra, desde os primórdios, no exercício da toga, até os dias dos quais somos todos testemunhas: a absoluta correção vocabular, o desdobramento lógico e a fulgurante clareza dos conceitos expressados.

O professor está presente no exercício erudito das teses, na riqueza da pesquisa, na solidez das ideias. Mas na hora da decisão – sem prejuízo das leituras e da cátedra, dos quais promana o denso conhecimento jurídico revelando o notável saber –, o resultado vem pontual com a aplicação do preceito fundamental e o restabelecimento do direito ofendido.

V.Exa. é o Juiz da realidade de seu tempo, aprecia os fatos que lhe cercam e, sempre que necessário – seguindo o exemplo, que a História consagrou, do Chief Justice Warren, conhecendo in faciem o grau de segregação em seu país, antes de dar seu voto decisivo –, V.Exa. também não hesita em conhecer diretamente os fatos visando fortalecer a decisão a ser tomada. Sempre foi assim, desde o início da sua carreira luminosa, como testemunha a obra autobiográfica que encantou o Brasil, Código da Vida, do colega advogado Saulo Ramos.

É esse exercício, raro entre os magistrados, mas tão salutar na construção e renovação do direito, que, ao lado da vasta cultura jurídica, permite-lhe a inabalável segurança com que pronuncia seus votos, na qualidade de relator ou partícipe do debate colegiado. Guardando, sempre, elegância no trato, que se revela na capacidade de ouvir antes de replicar, de reservar a mesma tonalidade – sem demasia no fortíssimo – para a discussão vibrante no respeitoso embate conceitual, que por vezes se estabelece nesse salão venerando.

Em certo momento, fazendo um retrospecto histórico, pude conhecer-lhe ainda melhor a pulsação. Estávamos em 1964. Ferido por uma explosão de insânia, o Des. Edgard de Moura Bittencourt foi punido pela ditadura militar, “condenado à dura pena de afastamento do cargo que foi o sonho realizado de minha mocidade”, como disse o saudoso magistrado em artigo publicado na Folha de São Paulo. Falecido vinte anos depois, coube ao então Juiz do 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo Cezar Peluso prestar as homenagens merecidas. Em discurso, celebrou-lhe a memória com um dos depoimentos mais pungentes que tenho conhecido, descrevendo o martírio e censurando a crueldade dos então curadores de plantão das instituições brasileiras.

Extraio trechos do discurso pronunciado naquela ocasião pelo Juiz Cezar Peluso:

“De sua vida, entretecida de fios da tragédia grega, martirologio romano e paixão hebraica, fica-nos a imagem imperecível de fidelidade à consciência e aos mais caros ideais da utopia humana. De sua morte uma exigência de reflexão institucional.

Jamais o atraíram os banquetes das oportunidades ou a medíocre rotina dos horizontes acabados. Espírito inquieto, privilegiadamente sensível às angustias e às palpitações da condição humana, conseguiu articular os valores permanentes do Direito com as mutações históricas. Preparou caminhos e antecipou veredas. Esteve além de sua época, como profeta do sentido jurídico. Não admira escandalizasse contemporâneos escravizados a fórmulas vazias e a preconceitos irremovíveis. A final, todo profeta é incomodo a estruturas e a padrões esclerosados.

Para afastar as suspicácias, não lhe bastaram a honradez pessoal, a integra devoção profissional, a sinceridade imperturbável do verbo, nem a romântica exemplaridade do convívio familiar. Mas, já indagara o velho cavaleiro do Palmeirim, “que prestam razões, onde não há razão”? (apud RUI BARBOSA, “Réplica”, vol. 11 pág. 111). A misteriosa iniqüidade, que grava o coração do homem, é insaciável e não o poupou.

Inventaram-lhe o pecado e não houve tempo por lhe inventarem o perdão. Eis a ironia da Historia. Se a alma grandiosa não pede tempo para anistiar e perdoar no ato mesmo da crucifixão, a catarse não prescinde da temporalidade, que é sempre limitada e não raro insuficiente. A Pilatos, Anás e Caifás, faltou-lhes tempo para refazer o tempo. Edgard de Moura Bittencourt não foi reempossado em todos os seus direitos e prerrogativas, nem restituído nos seus sonhos e esperanças.

Foi, no entanto, menos vítima do arbítrio rebelionário que do obscurantismo e intolerância informes, enquanto lhe deturparam as ideias, corromperam intenções, desfiguraram os gestos e conspurcaram a inocência. A tentação maniqueísta, que não desconfia dos enganos próprios e não se fia nas virtudes alheias, prepara, incentiva e preludia as grandes injustiças.”

Eis aí, Senhoras e Senhores, excertos de um depoimento indignado, doloroso, representativo de um período que a Historia jamais purgará, e que deve ser lembrado para que as gerações estejam atentas e oponham a mais severa resistência às tentações totalitárias.

E vem aqui reproduzido, afim de figurar nos anais do Supremo Tribunal a reminiscência histórica de seu Presidente, lembrança amarga de um suplício irreparável.

Uma vez foi a rebelião das massas que se considerava a grande ameaça. Golpes de Estado foram dados sob a falácia da proteção da sociedade organizada contra a subversão. Hoje, em nosso tempo, a principal ameaça vem de alguns que estão no topo da hierarquia social, numa ligação espúria com maus políticos e maus gestores. Esta notável mudança nos acontecimentos confunde muitas de nossas expectativas quanto ao curso da historia.

A democracia está hoje ameaçada não mais pelas massas, mas pela inconsciência das elites. Estas elites recusam-se a aceitar limites ou vínculos com a nação ou com lugares. Ao se isolar em suas redes, dividem a nação e trazem a idéia da existência de uma democracia para todos, fantasiada, para induzir a engodos, com designações falaciosas.

Isso explica porque estamos todos apáticos quanto à cultura comum e desinteressados em discutir política ou votar, escolher os governantes e os representantes legislativos. As elites, tendo se descartado de normas éticas, que a religião lhes proporcionava, e valendo-se da lassidão de alguns Estados, felizmente distantes de nós, agarram-se à crença de que, através da ciência e do lucro abusivo, associadas aos maus políticos, é possível dominar seu destino e escapar dos limites. E na busca desta fantasia, ficam fascinadas pela economia global. É uma rebelião que infortunadamente está acabando com tudo o que vale a pena no mundo ocidental e somente poderá ser contida eficazmente pela indelegável ação do Estado, como temos felizmente podido testemunhar em nossos dias.

Ao Supremo Tribunal Federal cabe significativa parcela nesse quadrante de nossa história contemporânea. Na Apologia de Sócrates Platão ressalta: “O juiz não é nomeado para fazer favores com a justiça, mas para julgar segundo a lei.” Mas há um conceito divergente, muito menos rígido, que busca conciliar o imperativo da lei, aprisionado nos códigos e na jurisprudência, com a percepção de uma realidade política e social essencialmente dinâmica. É um conceito que quebra o entrave do tecnicismo exacerbado, em beneficio da causa dos direitos humanos, das liberdades publicas e do equilíbrio social.

Muito mais do que garimpar textos e, com a ajuda de poderosas lupas, revolver – com as louváveis exceções de sempre – o que já passou, o que todos esperamos é que o Tribunal continue em harmonia com o sentimento nacional, fazendo viva a expressão de V.Exa. Presidente Cezar Peluso, dirigida aos novos Juízes, ao ressaltar em linguagem elevada, brilhante e sentenciosa: “A força do Judiciário é a força da própria sociedade civil, da qual é interprete.”

O Tribunal, assim, haverá de manter seu saudável equilíbrio, sintonizado com a política e ao mesmo tempo desligado dela, como tem sido no curso de sua longa historia, mostrando a todos quantos se envolveram na pesquisa dos fatos notáveis – que oferecem o grandioso cenário das muitas décadas vencidas –, que, ao contrario de uma famosa catilinária, muitas vezes repetida e sempre sem razão, foi o poder que menos faltou à república brasileira.

Há três milênios o Livro da Sabedoria adverte as gerações porvindouras, conturbadas ou felizes, na desordem ou na paz, que “a justiça é perpetua e imortal”. Guardemos, todos, a certeza de que teremos no comando do poder judiciário brasileiro o juiz que irá propagar esse principio de todos os tempos, o juiz cristão e amigo da verdade, como o queria a virtude teologal, e com todos atributos reclamados para a grandeza de seu sacerdócio, integro em julgar, integro em ouvir, servo da razão, da equidade e da tolerância, incansável no labor, e sobre quem – com o testemunho de Dra. Lucia de Toledo Piza Peluso, a esposa, a companheira querida da vida inteira, dos filhos Vinicius, Glais, Érica e Luciana, da nora, dos genros e dos netos – fazemos recair agora a brilhante imagem com a qual Rui Barbosa, o nosso pontífice maior, desvelou-se por inteiro diante da nação brasileira: “Às majestades da força nunca me inclinei. Mas sirvo às do Direito. Sirvo ao merecimento. Sirvo à razão. Sirvo à lei. Sirvo a minha Pátria. São essas as que eu reconheço neste mundo.”

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(*) Discurso pronunciado no Plenário do Supremo Tribunal Federal, em 23.4.10, pelo advogado Pedro Gordilho, por ocasião da solenidade de posse do Ministro Cezar Peluso na Presidência.

(**) “Great is Justice;

Justice is not settled by legislators and laws … it is in the soul,
It cannot be varied by statutes any more than love or pride or the attraction of gravity can,
It is immutable.. it does not depend on majorities…. majorities or what not come
at last before the same passionless and exact tribunal.
For justice are the grand natural lawyers and perfect judges …. it is in their souls,
It is well assorted …. They have not studied for nothing …. The great includes the less,
They rule on the highest grounds…. They oversee all eras and states and administrations,
The perfect judge fears nothing…. He could go front to front before God,
Before the perfect judge all shall stand back…. Life and death shall stand back
…. heaven and hell shall stand back.”
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Referencias bibliográficas

• Anuário da Justiça 2010, Consultor Jurídico / FAAP

• Barrington Moore, Jr. Injustiça, As bases sociais da obediência e da revolta, Ed. Brasileira, 1987, trad. João Roberto Martins Filho.

• Cezar Peluso, Uma Palavra aos Novos Juízes, Ass. Paulista de Magistrados, Ribeirão Preto, 1994.

• Christopher Lasch, A Rebelião das Elites e a traição da democracia, Ediouro, 1995, trad. de Talita M. Ridrigues.

• Discurso proferido pelo então Juiz Cezar Peluso em memória ao Des. Edgard de Moura Bittencourt, Diário Oficial do Estado de São Paulo. Justiça. 18.1.1984, p. 16.

• Emilia Viotti da Costa, O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania, Ed. Ieje, 2001

• Moura Bittencourt, De juiz a réu indefeso, Folha de São Paulo, 14.6.64

• R. Jahanbegloo, Isaiah Berlin: Com toda liberdade, Ed. Perspectiva 1996, trad. Fany Kon

• Rui Barbosa, A Questão Social e Política no Brasil, Simões Editor, Rio, 1958.

• Saulo Ramos, Código da Vida, Ed. Planeta, 10ª Reimpressão, 2008.

• Walt Whitman, Folhas de Relva, Ed. Bilíngüe, Iluminuras, trad. e posfacio de Rodrigo Garcia Lopes, 2005.

 
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